Visibilidade trans por inteiro: o direito à parentalidade
Dentro das identidades LGBTI+ é possível observar diferentes experiências de opressão e privilégio. As pessoas trans são as que se encontram em maior risco de vulnerabilidade psicossocial.
Dados recentes do inquérito da European Union Fundamental Rights Agency (2020) indicam, efetivamente, que a maior parte das pessoas respondentes trans (60%) reportou que “raramente” ou “quase nunca” revelava a sua identidade de género, comparativamente com 40% dos homens gays e 35% das mulheres lésbicas. Ligeiramente mais de metade das pessoas trans inquiridas disseram ter sido discriminadas no ano anterior, em comparação com 39% das mulheres lésbicas e 32% dos homens gays. Também durante a fase da adolescência as pessoas trans sofriam mais discriminação do que as suas congéneres LGB.
Estes dados justificam, por si só, que se continue a assinalar o Dia da Visibilidade Trans: muito está ainda por fazer para que o estigma deixe de se fazer sentir na vida quotidiana destas pessoas, seja na esfera social mais íntima, seja no relacionamento com serviços de saúde, da educação, sociais, entre outros.
Embora o direito à autodeterminação de género seja um aspeto fundamental, os direitos das pessoas trans e não binárias não se esgotam nesta questão. A visibilidade plena só existirá se se estender a todos os contextos e em todos os momentos da vida das pessoas trans, inclusive no que diz respeito às suas escolhas parentais. No seu artigo 36º, a Constituição da República Portuguesa (2005) refere que “Todos têm o direito de constituir família (…) em condições de plena igualdade”. Este é também um direito (não um dever) das pessoas trans e não binárias sobre o qual importa cada vez mais refletir.
Muitas pessoas com uma identidade trans ou não binária têm filhos e para um número considerável a parentalidade faz parte dos seus planos. Contudo, ter filhos é ainda uma prerrogativa das pessoas cisgénero, predominando as atitudes negativas face à parentalidade trans (Gato et al., 2021). Por outro lado, os tratamentos médicos ou cirúrgicos disponíveis para a afirmação do género podem ter impacto permanente na fertilidade das pessoas trans. Historicamente, ao procurar intervenções médicas para afirmarem o seu género, muitas pessoas trans e não binárias viram-se compelidas a aceitar esta infertilidade como um preço a pagar pelo processo de afirmação de género. No entanto, os avanços nas técnicas de preservação da fertilidade permitem hoje em dia que estas pessoas não tenham que descartar a opção pela parentalidade biológica.
A preservação da fertilidade integra uma série de procedimentos, cujo objetivo primordial é preservar o material reprodutivo. Em termos práticos, esses procedimentos envolvem a colheita e criopreservação de gâmetas (ovócitos e espermatozoides). A criopreservação de esperma é uma opção para mulheres trans que se irão submeter a tratamentos médicos de afirmação de género. As opções disponíveis para homens trans que desejam preservar a fertilidade incluem criopreservação de tecido ovárico, de ovócitos ou de embriões. As técnicas de preservação da fertilidade devem ser realizadas preferencialmente antes do começo da hormonoterapia pois, quando esta já foi iniciada, não só é necessário interrompê-la temporariamente, para estabilizar os níveis de determinadas hormonas, como pode mesmo influenciar o seu sucesso.
Compreensivelmente, muitas pessoas trans e não binárias encaram os procedimentos de preservação da fertilidade como perturbadores de sua identidade de género, já que implicam a vivência e o contacto com aspetos anatómicos internos ou externos associados a um género com o qual não se identificam (e.g., ecografia, masturbação para colheita de espermatozoides, gravidez), ou mesmo adiamento ou interrupção de tratamentos de afirmação de género pelos quais esperaram demasiado tempo. Além disso, quando efetuada a título privado, a preservação da fertilidade acarreta elevados custos financeiros que a tornam inacessível para muitas pessoas. Por fim, embora se registem progressos, nem sempre os serviços de saúde estão preparados para estes procedimentos. Por exemplo, num pequeno estudo realizado em Portugal, verificou-se que apenas uma pequena parte das pessoas trans e não binárias entrevistadas tinha recebido informações específicas sobre preservação da fertilidade por parte dos serviços de saúde (Marinho et al., 2021).
As pessoas profissionais de saúde têm um papel importante na abordagem da preservação da fertilidade entre as pessoas trans que recorrem a tratamentos médicos para afirmação do seu género. Evitando uma lógica pró-natalista, ou seja, a ideia preconcebida de que a reprodução é um objetivo de toda a gente, nada obsta a que informação detalhada seja providenciada àquelas pessoas que manifestem interesse em realizar estes procedimentos.
Em síntese, o muito que há ainda por fazer no que diz respeito ao bem-estar e à garantia dos direitos mais básicos das pessoas trans e não binárias não nos deve impedir de refletir sobre a questão da parentalidade. Antes pelo contrário: a visibilidade por inteiro só existirá quando se estender a todos os contextos e momentos da vida das pessoas trans e não binárias.
Referências
Constituição da República Portuguesa Sétima Revisão Constitucional (2005). Diário da República, n.º 155 – I Série – A, de 12 de agosto de 2005.
FRA – European Union Agency for Fundamental Rights (2020). European Union Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender Survey. Recuperado de https://fra.europa.eu/en/publication/2020/eu-lgbti-survey-results.
Gato, J., Leal, D., Biasutti, C., Tasker, F., & Fontaine, A.M. (2021). Building a Rainbow Family: Parenthood Aspirations of Lesbian, Gay, Bisexual, and Trans/Gender Diverse Individuals. In N. A. Morais, F. Scorsolini-Comin, & E. Cerqueira-Santos (eds.), Parenting and Couple Relationships Among LGBT People in Diverse Contexts (pp. 193-213). Springer.
Marinho, I., Gato, J., & Coimbra, S. (2021). Parenthood Intentions, Pathways to Parenthood, and Experiences in the Health Services of Trans People: an Exploratory Study in Portugal. Sexuality Research and Social Policy,18, 682–692. https://doi.org/10.1007/s13178-020-00491-5
*Psicólogo, Terapeuta Sistémico e Familiar, Investigador no Centro de Psicologia da Universidade do Porto/Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto